Órfãos do crime.
A mãe foi barbaramente assassinada pelas mãos de quem os devia proteger: o pai. É uma dupla orfandade.
Raiva e revolta difíceis de ultrapassar.
E o sistema só no início faculta apoio psicológico.
As indemnizações não são pagas e as ajudas prometidas esfumam-se com o passar dos dias.
O DN quis perceber como é que estes jovens e crianças sobrevivem a uma tragédia destas.
Uma tarefa que o Observatório de Mulheres Assassinadas quer, também, iniciar.
Para prestar apoio a estas famílias O DN optou por não dizer os nomes verdadeiros dos filhos, à excepção do Francisco, que deu a cara.
Amanhã é o Dia da Vítima do Crime
Pais ou os padrastos mataram-lhes as mães. Sobrevivem sem apoios
Alto, olhos castanhos, olhar sereno e profundo, bonito, Paulo, 18 anos, tenta parecer indiferente quando fala do homem que lhe matou a mãe. O próprio pai. Alguém de quem herdou a figura. Mas não é isso que o perturba. O que o perturba é o facto de o pai ter sido considerado "inimputável". E poder estar em liberdade dentro de três anos. Tem medo do que possa acontecer. Teme mais mortes. Sente que não foi feita justiça.
"Não é fácil, nunca é muito fácil no início. Um grande choque" diz Paulo, ao lembrar-se da forma como ficou sem mãe, Rosário Camilo, 39 anos. Várias facadas desferidas pelo ex-marido tiraram-lhe a vida. Não que acreditasse que o pai não o pudesse ter feito, embora não seja suposto ser o progenitor a causar uma tão grande dor. "Com base na situação em que vivíamos não podíamos esperar nada de bom", explica. Foi há menos de dois anos, dia 5 de Junho de 2007. Ele e os dois irmãos, menores, vivem com os avós maternos e numa harmonia familiar que desconheciam.
Cabelo loiro e olhos claros, herança da mãe, de quem se diz ser "demasiado bonita", Francisco, 25 anos, parece uma panela de pressão pronta a explodir ao menor descuido. Não foi o pai, mas o ex-companheiro que matou a mãe, Urbana Nascimento, 31 anos, com um tiro de caçadeira. Nem por isso o sentimento de orfandade é menor. O pai não tinha condições para o criar.
Actualmente, o rapaz vive com a avó paterna. Nunca recebeu a indemnização decretada pelo tribunal (50 mil euros) e não tem acesso à informação que lhe permitiria pedir um apoio estatal. Pertence a uma família carenciada de um bairro social do Laranjeiro. Faz 13 anos no dia da mulher, 8 de Março, que se deu a tragédia.
Francisco tem o mesmo sentimento de medo de Paulo "Tenho medo, por ele e por mim", confessa. Porquê? "Às vezes, ponho-me a pensar. Não durmo. Penso o que seria a minha vida se a minha mãe fosse viva. Fico com maus pensamentos. Tenho medo que ele me venha matar, sabe onde vivo. Mas também tenho medo de que eu lhe possa fazer se o vir. E ele vai sair daqui a um ano", confidencia. Achamos preferível não lhe contar que o homicida já passa os dias fora da prisão. Trabalha, tem quase uma vida normal. Apanhou 15 anos e sete meses de prisão e passou para o Regime Aberto Voltado para o Exterior há um ano.
Olhar doce, feições meigas numa estatura mediana, Sara, 20 anos, não quer falar da sua desdita. O pai matou-lhe a mãe, Dália Belchior, 45 anos, suicidando-se em seguida. A rapariga marca um encontro e chega acompanhada do cunhado, em representação da irmã, Carla, 31 anos. Explicam que é tal a dor que evitam o assunto. Nem que seja para esclarecer algumas factos que S. diz terem sido referidos erradamente quando da notícia do drama familiar, a 29 de Maio de 2000.
Foi o pai de Sara que matou Dália, uma segunda relação conjugal iniciada há 12 anos. A menina, então com 11 anos, acordou com o som de dois tiros e teve de lidar sozinha com a situação. Quando a tia e o marido desta acorreram, o homem deu um segundo tiro na própria cabeça. E como é que se sobrevive a isto? "Com a ajuda da família. E o facto de não querermos falar disso explica a dificuldade em que se vive", diz o cunhado.
Sobreviveu a explosão do Cartaxo
Se há vidas que parecem traçadas para sofrer, a de Dália é uma delas. É a professora de educação visual da escola do Cartaxo que sobreviveu a uma explosão de gás, em 1985. Catorze alunos também ficaram feridos, mas a mulher ficou toda queimada e completamente desfigurada. Submeteu-se a 63 cirurgias de reconstrução, o que só foi possível graças à solidariedade nacional. Quinze anos depois morreu às mãos do companheiro.
Sara é estudante universitária e vive em Lisboa. Após a morte da mãe ficou com uma tia em Almeirim, onde mantém a vivenda dos pais. Tem um irmão por parte do pai, Edmundo, de 36 anos, que também a tem apoiado. Mas tem vivido sobretudo com a irmã , que se encontrava a estudar em Lisboa quando da tragédia.
Dália é descrita pelos vizinhos como "uma mulher de garra, bem disposta e alegre". Viveu nove anos em Macau, onde conheceu o segundo companheiro, e regressou a Almeirim. Dava aulas e ajudava a irmã num café, actualmente fechado. Segundo as notícias da altura, o casal estaria para se separar e naquela noite a vítima veio trazer o marido, militar em Santa Margarida, e a filha a casa e voltou ao café da irmã. O homem não gostou que voltasse tão tarde. As cenas de ciúmes, agravadas pelo consumo de álcool, tinham transformado a vida do casal, embora os vizinhos digam nunca ter suspeitado de maus tratos.
Não era o caso de Rosário, a mãe de Paulo. A violência conjugal levou-a a fugir de casa cinco meses antes de ser morta. Pelo filhos, por pena, sabe-se lá porquê, aceitou encontrar-se com ex-marido na habitação que tinham partilhado na Amadora. Não voltou à noite a casa dos pais, para onde havia fugido. A família não avisou a polícia, afinal ela era maior. Vivem com essa culpa. Foi morta nessa madrugada.
Paulo é o mais velho de três irmãos e o único maior de idade. Lembra-se bem dos maus tratos de que a mãe foi vítima. O pai consumia estupefacientes e bebia em excesso. O rapaz sente-se responsável pela irmã, de 9 anos, e pelo irmão, de 11. Tal como se sentiu aos 16 anos pela mãe, quando a incentivou a fugir de casa. É, também, esse escudo que o faz dizer: "Dado o que aconteceu, até acho que tem corrido bem!"
A tragédia devolveu a família materna aos três irmãos. Família que tinham conhecido cinco meses antes do homicídio da mãe. O homem proibiu a mulher de estar com a família dela, restringindo-lhe ao máximo o contacto com terceiros. Até no trabalho. Ela trabalhava na ourivesaria dele.
Os irmãos vivem desde a morte da mãe com os avós maternos, em Lisboa, alternando com os fins-de-semana e férias em Aveiras, numa vivenda habitada também pelo tio Luís. Os mais novos estudam num dos melhores colégios privados de Lisboa. O mais velho na escola pública.
António Leal Oliveira, o avô, explica: "Sou filho único, mas a família da minha mulher é grande, cinco filhos, netos, sobrinhos, primos, todos muito unidos. Eles encontraram uma rede familiar que não tinham. Viviam num inferno, num clima de medo e ameaças constantes."
Rosário tinha 22 anos quando casou com o Pedro, três anos mais velho. As hostilidades entre o marido e a sua família começaram nesse dia. "Tinha um ódio muito grande ao meu pai, a mim agrediu-me no próprio dia do casamento", conta Luís Leal de Oliveira, 38 anos, o irmão de Rosário, 14 meses mais novo. É nele que as crianças mais novas vêem a figura paterna. E na irmã Teresa ou na avó, a figura materna.
"É avassalador. A destruição de um núcleo essencial, de uma referência ideal de família e do amor será muito difícil de ultrapassar. Por força de um acto de violência bárbaro, os filhos deparam-se com uma orfandade injustificável. Os genes e o ónus do acto cometido pelo progenitor podem, se não forem estruturados e devidamente acompanhados, transmitir uma vergonha real e uma dúvida plausível quanto à sua própria natureza, que os conduzirão, inevitavelmente, a caminhos erróneos", sustenta Luís Leal.
Não é tanto Paulo que os preocupa, mas os irmãos. Nunca lhes disseram o que se passou com a mãe. Contaram-lhes que tinha sofrido um acidente de automóvel. Uma mentira piedosa com pernas curtas para se manter. Muito provavelmente, já saberão que foi o pai que matou a mãe.
É a raiva que se solta quando menos se espera, as comparações inevitáveis quando o comportamento das crianças não é o esperado. "Tens o mau génio do teu pai!"
O assunto não é tema de conversa, apenas a menina fala da mãe. O menino é reservado, taciturno, tem alterações de comportamento. São acompanhados pelos psicólogos escolares, mas a família sente que talvez precisem de um apoio mais especializado. Paulo diz que não precisa de um psicólogo, nem mesmo quando isso foi sugerido pelos tribunais. "Não é um segredo, mas faz parte da minha intimidade e não tenho necessidade de falar das coisas com um desconhecido", justifica. Bastam-lhe os amigos para confidencias.
A família está a passar por uma "situação de horror que nunca tinham imaginado". António Leal, ex-director prisional, 70 anos, e a mulher, 65, viram-se, de repente, a ter que cuidar de três crianças. Uma nova realidade e sobrecarga, social e económica, a que se junta o apoio dos tios. Não recebem qualquer apoio do Estado.
"O ódio assume contornos desmedidos. Além da angústia e dor inerentes à perda têm que conviver diariamente com esse lado mais negro da natureza. E sofrem ainda o desgaste, a ansiedade e o receio prolongado e fundamentado de que o pesadelo não acabe nunca, tendo em conta as respostas do sistema judicial". As palavras de Luís Leal explicam-se pela sentença do homicida: inimputável.
Os psiquiatras, o da defesa e o do Instituto de Medicina Legal, diagnosticaram ao agressor perturbação paranóide de personalidade, mas não foi possível "estabelecer nexo de casualidade gerador de inimputabilidade entre o quadro clínico actual e os factos ocorridos". Nem o inverso. Dúvida que "o tribunal não logrou superar" e, em caso de dúvida, aplica-se o princípio in dúbio pró reo, o que significa que não havendo certezas "sobre a prova de matéria de facto, deve a mesma se valorada em favor do arguido".
Dois dos três juízes que julgaram o caso votaram o recurso à "medida de segurança de internamento em estabelecimento de tratamento com a duração mínima de três anos e a duração máxima de 20". O terceiro votou vencido por considerar que "deveria o arguido ser restituído à liberdade", cabendo ao seu médico decidir "se está, ou não, em condições de ter alta".
"Isto é uma vergonha!", gritou Luís Leal ao ouvir a sentença, no dia 29 de Outubro de 2009. Considera que, pelo menos, o arguido deveria ficar internado durante o período de tempo da pena máxima para homicídio qualificado, 20 anos. Repete que o homem não mostrou sinal de arrependimento. "Ele espalhou facas pela casa [o acórdão refere que havia facas na cozinha, nas casa de banho e no quarto, mas não consegue apurar quem as colocou], assassinou a minha irmã à facada. Nunca pensei matar alguém, mas desejo matar aquele indivíduo, o que é contra aos meus valores. E, ao mesmo tempo, tenho medo dele. Aquele homem já matou!"
E o filho? "Não o quero ver. Não sei do que é capaz", diz Paulo. E se o encontrar em casa dos avós e tios paternos?". "Quando ele sair da prisão, tenho de cortar relações. Não podemos correr o risco dele voltar a matar." Preferia que se tivesse suicidado? "Acho que sim... nunca considerei que tinha com ele uma relação de pai e filho!"
"O mal dela era ser bonita!"
"Tenho medo do que possa acontecer. O que ele fez à minha mãe também pode fazer a mim. Ele nunca funcionou bem da cabeça, dizem que era a bebida, mas acho que eram outras coisas", diz Francisco, o filho de Urbana, a cabeleireira que foi assassinada em Campo de Ourique, Lisboa , quando se preparava para começar o dia de trabalho no seu cabeleireiro. Só faltava assinar a escritura. O filho não sabe como as coisas foram resolvidas. "O meu avô materno é que tratou de tudo. Não sei se deixou algum papel".
As vizinhas dizem que "o mal de Urbana era ser muito bonita". Esquecem que a mulher tinha deixado o companheiro, um empregado do café onde ela ia tomar o pequeno-almoço e com quem viveu um ano e dois meses. "Nunca foi um marido para ela. Tratava-a mal. O que é que eu podia fazer? Não a consegui defender? Tinha 12 anos!"
A mulher foi viver para o outro lado do rio após a separação. Dia 8 de Março de 1996, pelas 08.00, o homicida, armado de caçadeira e com 31 cartuchos à cintura, forçou a entrada no cabeleireiro. Fechou as empregadas na casa-de-banho e esperou a ex-namorada. Esta chegou acompanhada de um técnico que ia fazer um demonstração de máquinas. Foram ambos recebidos com uma bala. Urbana não sobreviveu.
"Foi a minha avó que me foi buscar à escola, nunca tinha acontecido. Pressenti logo que havia qualquer coisa", conta Francisco. A avó, 77 anos, viúva, acrescenta: "Ele achou estranho, mas lá viemos. Uma senhora ia a ler a notícia no autocarro [um vespertino]. Pedi-lhe para a esconder. Só em casa lhe disse que a mãe tinha morrido. O meu neto gritou: 'Foi ele que a matou, dá-me uma pistola para o matar!'".
Um "pensamento mau" que não o larga, mesmo agora que tenta endireitar a vida. É efectivo numa empresa de limpezas de um hospital. Tem um filho de cinco anos, mas não vive com ele.
Depois da morte da mãe, Francisco foi viver com o avô e o tio maternos alguns meses, acabando por se mudar para a casa dos avós paternos, no mesmo bairro. "Num ano morreu a minha avó materna, a minha mãe e o meu avô materno", lamenta o rapaz. Nunca chegou ao pé das campas da mãe e da avó. Até há três dias.
Maria está quase a completar 18 anos. Tinha 11 quando foi metida numa vida de infelicidade vivida num condomínio privado de Lisboa e com contornos dignos de um clássico policial. O pai matou a mãe no dia 6 de Março de 2002 e simulou um acidente de viação. E o mais dramático é que a menina se agarrou ao pai como tábua de salvação. Ele reclamava inocência e assistiu ao funeral da mulher. Quando soube que o pai era o homicida, a filha ficou órfã pela segunda vez.
O homicida, engenheiro, estava casado com Lara (nome fictício), advogada, 23 anos, embora nos últimos tempos a mulher pensasse em deixá-lo. Manteve-se casada por medo da reacção violenta do marido. Entretanto, iniciou uma relação amorosa e acabou por pedir o divórcio quando o marido descobriu. Este não aceitou e começou a programar a morte da mulher, nomeadamente o álibi.
Na noite do homicídio, esperou a mulher em casa e apertou-lhe o pescoço. Meteu-a no carro e simulou um acidente, indo de seguida para o trabalho. Só uma investigação policial de excelência permitiu conhecer a verdade dos factos. Foi condenado por crime de homicídio qualificado a 15 anos de prisão e a pagamento 75mil euros, dinheiro que ainda não foi entregue.
Só agora o tribunal inibiu o pai de exercer o poder paternal. Ele queria que a tutela fosse entregue aos seus pais. A menina vai fazer 18 anos, já não se justifica atribuir a tutela. Os avós viveram com o medo de lhes tirarem a neta. CÉU NEVES (DN)
Pais ou os padrastos mataram-lhes as mães. Sobrevivem sem apoios
Alto, olhos castanhos, olhar sereno e profundo, bonito, Paulo, 18 anos, tenta parecer indiferente quando fala do homem que lhe matou a mãe. O próprio pai. Alguém de quem herdou a figura. Mas não é isso que o perturba. O que o perturba é o facto de o pai ter sido considerado "inimputável". E poder estar em liberdade dentro de três anos. Tem medo do que possa acontecer. Teme mais mortes. Sente que não foi feita justiça.
"Não é fácil, nunca é muito fácil no início. Um grande choque" diz Paulo, ao lembrar-se da forma como ficou sem mãe, Rosário Camilo, 39 anos. Várias facadas desferidas pelo ex-marido tiraram-lhe a vida. Não que acreditasse que o pai não o pudesse ter feito, embora não seja suposto ser o progenitor a causar uma tão grande dor. "Com base na situação em que vivíamos não podíamos esperar nada de bom", explica. Foi há menos de dois anos, dia 5 de Junho de 2007. Ele e os dois irmãos, menores, vivem com os avós maternos e numa harmonia familiar que desconheciam.
Cabelo loiro e olhos claros, herança da mãe, de quem se diz ser "demasiado bonita", Francisco, 25 anos, parece uma panela de pressão pronta a explodir ao menor descuido. Não foi o pai, mas o ex-companheiro que matou a mãe, Urbana Nascimento, 31 anos, com um tiro de caçadeira. Nem por isso o sentimento de orfandade é menor. O pai não tinha condições para o criar.
Actualmente, o rapaz vive com a avó paterna. Nunca recebeu a indemnização decretada pelo tribunal (50 mil euros) e não tem acesso à informação que lhe permitiria pedir um apoio estatal. Pertence a uma família carenciada de um bairro social do Laranjeiro. Faz 13 anos no dia da mulher, 8 de Março, que se deu a tragédia.
Francisco tem o mesmo sentimento de medo de Paulo "Tenho medo, por ele e por mim", confessa. Porquê? "Às vezes, ponho-me a pensar. Não durmo. Penso o que seria a minha vida se a minha mãe fosse viva. Fico com maus pensamentos. Tenho medo que ele me venha matar, sabe onde vivo. Mas também tenho medo de que eu lhe possa fazer se o vir. E ele vai sair daqui a um ano", confidencia. Achamos preferível não lhe contar que o homicida já passa os dias fora da prisão. Trabalha, tem quase uma vida normal. Apanhou 15 anos e sete meses de prisão e passou para o Regime Aberto Voltado para o Exterior há um ano.
Olhar doce, feições meigas numa estatura mediana, Sara, 20 anos, não quer falar da sua desdita. O pai matou-lhe a mãe, Dália Belchior, 45 anos, suicidando-se em seguida. A rapariga marca um encontro e chega acompanhada do cunhado, em representação da irmã, Carla, 31 anos. Explicam que é tal a dor que evitam o assunto. Nem que seja para esclarecer algumas factos que S. diz terem sido referidos erradamente quando da notícia do drama familiar, a 29 de Maio de 2000.
Foi o pai de Sara que matou Dália, uma segunda relação conjugal iniciada há 12 anos. A menina, então com 11 anos, acordou com o som de dois tiros e teve de lidar sozinha com a situação. Quando a tia e o marido desta acorreram, o homem deu um segundo tiro na própria cabeça. E como é que se sobrevive a isto? "Com a ajuda da família. E o facto de não querermos falar disso explica a dificuldade em que se vive", diz o cunhado.
Sobreviveu a explosão do Cartaxo
Se há vidas que parecem traçadas para sofrer, a de Dália é uma delas. É a professora de educação visual da escola do Cartaxo que sobreviveu a uma explosão de gás, em 1985. Catorze alunos também ficaram feridos, mas a mulher ficou toda queimada e completamente desfigurada. Submeteu-se a 63 cirurgias de reconstrução, o que só foi possível graças à solidariedade nacional. Quinze anos depois morreu às mãos do companheiro.
Sara é estudante universitária e vive em Lisboa. Após a morte da mãe ficou com uma tia em Almeirim, onde mantém a vivenda dos pais. Tem um irmão por parte do pai, Edmundo, de 36 anos, que também a tem apoiado. Mas tem vivido sobretudo com a irmã , que se encontrava a estudar em Lisboa quando da tragédia.
Dália é descrita pelos vizinhos como "uma mulher de garra, bem disposta e alegre". Viveu nove anos em Macau, onde conheceu o segundo companheiro, e regressou a Almeirim. Dava aulas e ajudava a irmã num café, actualmente fechado. Segundo as notícias da altura, o casal estaria para se separar e naquela noite a vítima veio trazer o marido, militar em Santa Margarida, e a filha a casa e voltou ao café da irmã. O homem não gostou que voltasse tão tarde. As cenas de ciúmes, agravadas pelo consumo de álcool, tinham transformado a vida do casal, embora os vizinhos digam nunca ter suspeitado de maus tratos.
Não era o caso de Rosário, a mãe de Paulo. A violência conjugal levou-a a fugir de casa cinco meses antes de ser morta. Pelo filhos, por pena, sabe-se lá porquê, aceitou encontrar-se com ex-marido na habitação que tinham partilhado na Amadora. Não voltou à noite a casa dos pais, para onde havia fugido. A família não avisou a polícia, afinal ela era maior. Vivem com essa culpa. Foi morta nessa madrugada.
Paulo é o mais velho de três irmãos e o único maior de idade. Lembra-se bem dos maus tratos de que a mãe foi vítima. O pai consumia estupefacientes e bebia em excesso. O rapaz sente-se responsável pela irmã, de 9 anos, e pelo irmão, de 11. Tal como se sentiu aos 16 anos pela mãe, quando a incentivou a fugir de casa. É, também, esse escudo que o faz dizer: "Dado o que aconteceu, até acho que tem corrido bem!"
A tragédia devolveu a família materna aos três irmãos. Família que tinham conhecido cinco meses antes do homicídio da mãe. O homem proibiu a mulher de estar com a família dela, restringindo-lhe ao máximo o contacto com terceiros. Até no trabalho. Ela trabalhava na ourivesaria dele.
Os irmãos vivem desde a morte da mãe com os avós maternos, em Lisboa, alternando com os fins-de-semana e férias em Aveiras, numa vivenda habitada também pelo tio Luís. Os mais novos estudam num dos melhores colégios privados de Lisboa. O mais velho na escola pública.
António Leal Oliveira, o avô, explica: "Sou filho único, mas a família da minha mulher é grande, cinco filhos, netos, sobrinhos, primos, todos muito unidos. Eles encontraram uma rede familiar que não tinham. Viviam num inferno, num clima de medo e ameaças constantes."
Rosário tinha 22 anos quando casou com o Pedro, três anos mais velho. As hostilidades entre o marido e a sua família começaram nesse dia. "Tinha um ódio muito grande ao meu pai, a mim agrediu-me no próprio dia do casamento", conta Luís Leal de Oliveira, 38 anos, o irmão de Rosário, 14 meses mais novo. É nele que as crianças mais novas vêem a figura paterna. E na irmã Teresa ou na avó, a figura materna.
"É avassalador. A destruição de um núcleo essencial, de uma referência ideal de família e do amor será muito difícil de ultrapassar. Por força de um acto de violência bárbaro, os filhos deparam-se com uma orfandade injustificável. Os genes e o ónus do acto cometido pelo progenitor podem, se não forem estruturados e devidamente acompanhados, transmitir uma vergonha real e uma dúvida plausível quanto à sua própria natureza, que os conduzirão, inevitavelmente, a caminhos erróneos", sustenta Luís Leal.
Não é tanto Paulo que os preocupa, mas os irmãos. Nunca lhes disseram o que se passou com a mãe. Contaram-lhes que tinha sofrido um acidente de automóvel. Uma mentira piedosa com pernas curtas para se manter. Muito provavelmente, já saberão que foi o pai que matou a mãe.
É a raiva que se solta quando menos se espera, as comparações inevitáveis quando o comportamento das crianças não é o esperado. "Tens o mau génio do teu pai!"
O assunto não é tema de conversa, apenas a menina fala da mãe. O menino é reservado, taciturno, tem alterações de comportamento. São acompanhados pelos psicólogos escolares, mas a família sente que talvez precisem de um apoio mais especializado. Paulo diz que não precisa de um psicólogo, nem mesmo quando isso foi sugerido pelos tribunais. "Não é um segredo, mas faz parte da minha intimidade e não tenho necessidade de falar das coisas com um desconhecido", justifica. Bastam-lhe os amigos para confidencias.
A família está a passar por uma "situação de horror que nunca tinham imaginado". António Leal, ex-director prisional, 70 anos, e a mulher, 65, viram-se, de repente, a ter que cuidar de três crianças. Uma nova realidade e sobrecarga, social e económica, a que se junta o apoio dos tios. Não recebem qualquer apoio do Estado.
"O ódio assume contornos desmedidos. Além da angústia e dor inerentes à perda têm que conviver diariamente com esse lado mais negro da natureza. E sofrem ainda o desgaste, a ansiedade e o receio prolongado e fundamentado de que o pesadelo não acabe nunca, tendo em conta as respostas do sistema judicial". As palavras de Luís Leal explicam-se pela sentença do homicida: inimputável.
Os psiquiatras, o da defesa e o do Instituto de Medicina Legal, diagnosticaram ao agressor perturbação paranóide de personalidade, mas não foi possível "estabelecer nexo de casualidade gerador de inimputabilidade entre o quadro clínico actual e os factos ocorridos". Nem o inverso. Dúvida que "o tribunal não logrou superar" e, em caso de dúvida, aplica-se o princípio in dúbio pró reo, o que significa que não havendo certezas "sobre a prova de matéria de facto, deve a mesma se valorada em favor do arguido".
Dois dos três juízes que julgaram o caso votaram o recurso à "medida de segurança de internamento em estabelecimento de tratamento com a duração mínima de três anos e a duração máxima de 20". O terceiro votou vencido por considerar que "deveria o arguido ser restituído à liberdade", cabendo ao seu médico decidir "se está, ou não, em condições de ter alta".
"Isto é uma vergonha!", gritou Luís Leal ao ouvir a sentença, no dia 29 de Outubro de 2009. Considera que, pelo menos, o arguido deveria ficar internado durante o período de tempo da pena máxima para homicídio qualificado, 20 anos. Repete que o homem não mostrou sinal de arrependimento. "Ele espalhou facas pela casa [o acórdão refere que havia facas na cozinha, nas casa de banho e no quarto, mas não consegue apurar quem as colocou], assassinou a minha irmã à facada. Nunca pensei matar alguém, mas desejo matar aquele indivíduo, o que é contra aos meus valores. E, ao mesmo tempo, tenho medo dele. Aquele homem já matou!"
E o filho? "Não o quero ver. Não sei do que é capaz", diz Paulo. E se o encontrar em casa dos avós e tios paternos?". "Quando ele sair da prisão, tenho de cortar relações. Não podemos correr o risco dele voltar a matar." Preferia que se tivesse suicidado? "Acho que sim... nunca considerei que tinha com ele uma relação de pai e filho!"
"O mal dela era ser bonita!"
"Tenho medo do que possa acontecer. O que ele fez à minha mãe também pode fazer a mim. Ele nunca funcionou bem da cabeça, dizem que era a bebida, mas acho que eram outras coisas", diz Francisco, o filho de Urbana, a cabeleireira que foi assassinada em Campo de Ourique, Lisboa , quando se preparava para começar o dia de trabalho no seu cabeleireiro. Só faltava assinar a escritura. O filho não sabe como as coisas foram resolvidas. "O meu avô materno é que tratou de tudo. Não sei se deixou algum papel".
As vizinhas dizem que "o mal de Urbana era ser muito bonita". Esquecem que a mulher tinha deixado o companheiro, um empregado do café onde ela ia tomar o pequeno-almoço e com quem viveu um ano e dois meses. "Nunca foi um marido para ela. Tratava-a mal. O que é que eu podia fazer? Não a consegui defender? Tinha 12 anos!"
A mulher foi viver para o outro lado do rio após a separação. Dia 8 de Março de 1996, pelas 08.00, o homicida, armado de caçadeira e com 31 cartuchos à cintura, forçou a entrada no cabeleireiro. Fechou as empregadas na casa-de-banho e esperou a ex-namorada. Esta chegou acompanhada de um técnico que ia fazer um demonstração de máquinas. Foram ambos recebidos com uma bala. Urbana não sobreviveu.
"Foi a minha avó que me foi buscar à escola, nunca tinha acontecido. Pressenti logo que havia qualquer coisa", conta Francisco. A avó, 77 anos, viúva, acrescenta: "Ele achou estranho, mas lá viemos. Uma senhora ia a ler a notícia no autocarro [um vespertino]. Pedi-lhe para a esconder. Só em casa lhe disse que a mãe tinha morrido. O meu neto gritou: 'Foi ele que a matou, dá-me uma pistola para o matar!'".
Um "pensamento mau" que não o larga, mesmo agora que tenta endireitar a vida. É efectivo numa empresa de limpezas de um hospital. Tem um filho de cinco anos, mas não vive com ele.
Depois da morte da mãe, Francisco foi viver com o avô e o tio maternos alguns meses, acabando por se mudar para a casa dos avós paternos, no mesmo bairro. "Num ano morreu a minha avó materna, a minha mãe e o meu avô materno", lamenta o rapaz. Nunca chegou ao pé das campas da mãe e da avó. Até há três dias.
Maria está quase a completar 18 anos. Tinha 11 quando foi metida numa vida de infelicidade vivida num condomínio privado de Lisboa e com contornos dignos de um clássico policial. O pai matou a mãe no dia 6 de Março de 2002 e simulou um acidente de viação. E o mais dramático é que a menina se agarrou ao pai como tábua de salvação. Ele reclamava inocência e assistiu ao funeral da mulher. Quando soube que o pai era o homicida, a filha ficou órfã pela segunda vez.
O homicida, engenheiro, estava casado com Lara (nome fictício), advogada, 23 anos, embora nos últimos tempos a mulher pensasse em deixá-lo. Manteve-se casada por medo da reacção violenta do marido. Entretanto, iniciou uma relação amorosa e acabou por pedir o divórcio quando o marido descobriu. Este não aceitou e começou a programar a morte da mulher, nomeadamente o álibi.
Na noite do homicídio, esperou a mulher em casa e apertou-lhe o pescoço. Meteu-a no carro e simulou um acidente, indo de seguida para o trabalho. Só uma investigação policial de excelência permitiu conhecer a verdade dos factos. Foi condenado por crime de homicídio qualificado a 15 anos de prisão e a pagamento 75mil euros, dinheiro que ainda não foi entregue.
Só agora o tribunal inibiu o pai de exercer o poder paternal. Ele queria que a tutela fosse entregue aos seus pais. A menina vai fazer 18 anos, já não se justifica atribuir a tutela. Os avós viveram com o medo de lhes tirarem a neta. CÉU NEVES (DN)