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RE: Esmagados pela Holanda

Na Holanda reina uma conspiração contra trabalhadores portugueses. Há de tudo num cenário de crime organizado: exploração, extorsão, intimidação. Hélder e Vânia são duas entre milhares de vítimas. Nas bancadas estão dois governos a assistir.

Para mim, a Holanda acabou. Estou cheio!" Quase dois anos de enganos e frustrações e a esperança de Hélder Carril e Vânia Alves chegou ao fim. Para trás fica o sonho de uma vida melhor. Com um processo de despedimento sem justa causa em tribunal, dependem da caridade de um casal holandês, que lhes ofereceu um sótão minúsculo para viver. Ele está incapacitado. Ela faz de tudo para contornar as burocracias impostas pela sociedade da flexisegurança. Depois de meses de exploração, estão abandonados - "por Portugal e pela Holanda".

O casal é espelho dos cerca de cinco mil trabalhadores temporários portugueses que todos os anos rumam aos Países Baixos, aliciados por angariadores ou anúncios de jornal com promessas de dinheiro fácil. A história repete-se, mas são raros os que ficam para apresentar queixa. Vânia e Hélder decidiram ficar e enfrentar o pesadelo.

Promessas. Muitas promessas

Início de 2006. O casal do Porto - ele com 31 anos, ela com 23 - parte para a Holanda. A agência de trabalho temporário Terra Verde, em Braga, promete-lhes lugar em Barlo, na empresa Hands to Work. Viveriam num simpático "bungalow" e o ordenado de 8 euros à hora antevia um rendimento mensal de mais de 1500 euros limpos. Para trás ficava a filha, ainda bebé, com a avó, até o casal ter "a vida arranjada por lá".

"Mal cheguei senti-me enganada", conta Vânia. O isolamento era total e a "minúscula" rulote que lhes foi atribuída era afinal repartida com quatro desconhecidos. "Ainda tentei fazer queixa mas chegámos num domingo e os escritórios estavam fechados". O impacto inicial foi minimizado pelo discurso positivo de outro português, género "capataz do grupo". Garantiu-lhes que, "se trabalhassem bem, a vida ia ser muito boa". No dia seguinte, exigem-lhes que assinem outro contrato, desta vez em holandês. Nos escritórios ouvem muitas discussões, quase sempre por causa de pagamentos. No entanto, decidem ficar. "Na Holanda, os portugueses vivem sempre na esperança de que a próxima semana seja melhor. Foi o que nos aconteceu. A verdade é que nunca melhorou."

E o montante prometido em Braga nunca chegou. Tal como em todas as empresas por onde passaram ao longo dos últimos dois anos, os recibos de ordenado semanais traziam os mais insólitos descontos: 50 euros pelo cartão de entrada em casa, 90 euros para fardas, vales de adiantamento nunca pedidos. "Chegámos a receber 24 cêntimos por uma semana de trabalho." "Queixávamo-nos, mas a resposta era sempre: 'Tás mal, muda-te'. Como precisamos de trabalhar ouvíamos e calávamos."

Durante quase dois anos saltitaram de agência em agência, trabalharam em estufas, na apanha de fruta, embalamentos e até em fábricas de automóveis. Nalguns casos, mais de três horas seguidas de joelhos ou com neve até meio das pernas. "Ninguém imagina a frustração de vir lutar por uma vida melhor e acabar a ligar à família a pedir dinheiro para comer."

Em Den Helder, quando trabalharam na agência The Five, o cenário era dantesco, mais uma vez. "Partilhávamos a casa com 80 pessoas. A comida tinha de ser guardada no quarto porque os frigoríficos não funcionavam. Chegámos a acordar com baratas a passar-nos por cima." Nem quando Hélder sofreu uma queda a trabalhar, a empresa se disponibilizou para o levar ao hospital. "Ficávamos sempre em zonas industriais, sem transportes públicos por perto. Até uma ida ao supermercado tinha de ser acompanhada pelo capataz. Não havia hipótese de falar com alguém que nos dissesse os nossos direitos." Tal como outros trabalhadores, estavam presos numa redoma dominada por turcos e portugueses.

Uma esperança, mais um engano

Em Junho, Hélder tem pela primeira vez um contrato directo, na empresa de construção Bouwbedrijf, do Monsanto. Carlos Santana, o patrão, propôs-lhe um ordenado limpo de 1400 euros e prometeu ajudar a alugar casa.

Durante cerca de mês e meio, Hélder deu "o litro". Chegou a trabalhar 14 horas seguidas dentro de um túnel com pouco mais de metro e meio de altura. Com a coluna a dar sinais de que não aguentaria o ritmo, um dia não se conseguia mexer. "O médico disse que desconfiava de uma hérnia discal e que era impossível continuar a trabalhar até ter os resultados dos exames. Foi o meu patrão que me traduziu tudo, mas quando fomos para casa fez-me um ultimato: 'Se não trabalhas, és despedido.' Tentei, mas não consegui."

Dos ordenados, mais uma vez, os valores prometidos nunca chegaram por inteiro à conta de Hélder, que três semanas depois foi internado. Durante os 13 dias em que esteve no hospital tomou 50mg de morfina para suportar as dores, medicação que permanece até hoje. O patrão não participou à UWV (Agência de Segurança Social) que o empregado estava doente, nem lhe assegurou 70% do ordenado, como exige a lei holandesa do trabalho.

Ao "Expresso", Carlos Santana conta outra versão: "Ele tinha tido um acidente de trabalho em Den Helder, já vinha doente de lá." O irmão, Raul, enaltece a história: "Ele esteve internado, acho até que esteve em coma. Não venham tirar o pão da boca das minhas filhas. Ele já veio foi com a intenção de nos chular!" Sobre o dinheiro, garantem não dever nada e mostram recibos de ordenado. Detalhe: nenhum deles assinado por Hélder. Mas também para isso há justificação, como não poderia deixar de ser: "Foi dado em vales de adiantamento. É o que dá a boa fé das pessoas, aprendi a lição."

Sem dinheiro e com o companheiro no hospital, Vânia enfrenta o pior: "Cheguei a casa e dei com cinco marroquinos lá dentro. Obrigaram-me a ir para o meio da rua com as nossas roupas dentro de sacos do lixo." A ajuda veio de onde menos se esperaria: Remco e Narda, um casal holandês com quem tinham travado conhecimento poucas semanas antes. "Chamaram a polícia, que disse que eu não podia fazer nada uma vez que não tinha contrato de arrendamento", lembra Vânia. "Aconselharam-me a não andar sozinha na rua, mas não me deixaram apresentar queixa. Se não fosse o casal holandês tinha ficado ali largada."

O ex-senhorio, um jovem marroquino de barbas, também tem a sua versão: "Eu aluguei a casa a esse Carlos Santana só por um mês e quando voltei estava cheia de gente. Nunca me atendeu o telefone, nem pagou. Se apanho esse filho da puta mato-o."

O despedimento de Hélder está agora em tribunal. Resta-lhes um sótão, onde vivem dependentes da caridade de Remco e Narda. Sem dinheiro para o seguro de saúde, cujo prazo de pagamento expirou, o direito ao tratamento também pode acabar: "Sinto-me uma bola de pingue-pongue", desabafa o jovem. "Já me inscrevi em todo o lado, mas o subsídio de doença não chega. Durante dois anos descontei as taxas todas e agora vejo que a Holanda não me quer ajudar."

Dois governos a assistir

Para José Xavier, conselheiro das comunidades portuguesas nos Países Baixos, a odisseia de Hélder e Vânia não traz nada de novo. "Tem sempre o mesmo início: aliciamento com promessas fantásticas. O que varia é o tempo que se aguentam." Embora não existam estatísticas oficiais, o Conselho das Comunidades Portuguesas estima que, anualmente, rumem à Holanda mais de cinco mil portugueses trabalhadores temporários. "A maioria regressa com uma mão à frente, outra atrás. Raramente apresentam queixa." Por Xavier já passaram dezenas de pessoas desesperadas, inseridas num "ciclo vicioso" de dependência das empresas: "Ficam reféns da situação. As empresas manipulam as horas de trabalho que lhes dão, para que só ganhem o suficiente para pagar a casa e a alimentação. Isto é a flexisegurança."

Também atento ao problema dos portugueses temporários na Holanda, Miguel Portas, eurodeputado do Bloco de Esquerda, foi este ano ouvir os trabalhadores. O que encontrou foi um mercado "totalmente selvagem" e uma "comunidade aprisionada". "Muitos são até obrigados a abrir conta bancária conjunta com alguém da empresa. Além de terem problemas de pagamentos, ainda há esta forma de manipulação", explica o eurodeputado. Por isso, não tem dúvidas: "Nem se põe em causa se há ou não exploração. A única questão é se são tratados menos-mal ou abaixo de cão."

De acordo com a Secretaria de Estado das Comunidades (SEC), um trabalhador português que se sinta burlado deve "contactar imediatamente o Consulado, que o esclarecerá e encaminhará". Foi o que Vânia e Hélder fizeram. No Consulado português em Roterdão foi-lhes dito, apenas, que não podiam intervir entre a entidade patronal e o empregado. Já na embaixada disseram-lhes que a única solução era serem repatriados. "Perguntámos se podíamos continuar o caso em Portugal. 'Não. Por isso mesmo é que tanta gente é repatriada'", lembra o casal. Mesmo sabendo que viviam da caridade alheia, a embaixada pediu que enviassem por fax todos os documentos para analisarem a situação. Ao fim de semana e meia, e como não havia resposta, foram pessoalmente à embaixada. "Pedimos dinheiro emprestado e fomos. Se não tivéssemos ido lá bater à porta ninguém nos dizia nada."

"O consulado está ao abandono desde Abril. Há cinco funcionários para uma comunidade de mais de 15 mil portugueses" - critica José Xavier -, referindo ainda "a falta de uma assistente social, de apoio jurídico a tempo inteiro e de uma equipa que vá para o terreno". A SEC justifica que "está em curso uma reestruturação consular" e que, até final deste ano, este será integrado na Secção Consular da Embaixada. Até lá, está sob "gestão interina do conselheiro da embaixada", que se desloca fisicamente ao Consulado de vez em quando.

"Em Março, a SEC prometeu que a reestruturação ia ser rápida e que o apoio à comunidade ia melhorar. Já lá vão sete meses", salienta o conselheiro das comunidades, acusando o embaixador de "falta de boa vontade com os trabalhadores temporários". Para Xavier, que se dedica à comunidade portuguesa há dez anos, a saída do último cônsul, "foi uma grande perda". "Em cinco meses, o Vítor Sereno o último cônsul foi acarinhado pela comunidade e fez avançar medidas para travar este drama. Agora, a visão das pessoas sobre a embaixada e o consulado é: para lá não vamos porque não nos vão ajudar."

A SEC admite que os problemas com portugueses burlados continuam "quase diariamente". Já o conselheiro da Embaixada de Portugal em Haia, Luís Barros, disse ao "Expresso" que os casos são "cada vez menos comuns" e que as queixas não lhe chegam. Embora não pareça haver consenso, a realidade é que muitos dos mecanismos postos em prática por Vítor Sereno, como "reuniões mensais com os representantes das associações portuguesas, a contratação de um assistente social e as visitas periódicas às sedes das grandes empresas de trabalho temporário, ficaram parados após a sua saída", garante José Xavier.

Memorando sem memória

Assumindo que há um problema com os temporários portugueses, foi assinado, há cerca de dois meses, um Memorando de Entendimento entre o Ministério do Trabalho e Solidariedade português e o Ministério dos Assuntos Sociais e Emprego dos Países Baixos. Nesse âmbito, foram publicadas, em português, duas brochuras de esclarecimento sobre a lei holandesa de trabalho e passou a ser possível apresentar queixa no "site" da Embaixada dos Países Baixos em Lisboa. Medidas que, para o eurodeputado Miguel Portas, "não chegam". "Estamos a falar de pessoas com pouca formação, que mal sabem mexer na Internet. As medidas de prevenção devem ser feitas na origem dos problemas, com incidência nos bairros de onde estes trabalhadores saem."

O ex-cônsul Vítor Sereno refere ainda a incapacidade de comunicação destes trabalhadores e o desconhecimento da lei laboral dos Países Baixos. No entanto, "o mais estranho de tudo é que ainda se vêem anúncios de meia página com promessas de trabalho fácil na Holanda".

Paulo Carvalho, director da Alta Autoridade do Trabalho, garante estar em permanente contacto com os homónimos holandeses, mas lembra: "Enquanto em Portugal a Autoridade tem domínio nas áreas da saúde, higiene, segurança e salários, na Holanda, tudo o que diga respeito a ordenados é tratado em tribunal". Quanto aos angariadores, frisa que "a burla pode ser considerada prática criminal" e que tem sido feito "o rastreio de anúncios de jornais". Embora algumas empresas já tenham sido investigadas, Paulo Carvalho salienta que "muitos destes angariadores são pessoas singulares, que apenas deixam número de telemóvel". Se a Polícia Judiciária tem em curso alguma operação para detectar estes angariadores não foi possível ao "Expresso" saber. Até ao fecho desta edição, a PJ escusou-se a falar sobre o tema.  

E.Silva

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